[Tradução] Shimotsuma Monogatari / Kamikaze Girls - O Livro (Introdução)

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No último post de tradução que postei a Suellen pediu uma tradução de Kamikaze Girls e, como eu já tinha o livro aqui (e já tenho outras traduções do Novala no blog), decidi postar. image

Ganhei esse livro (edição de 2002) há um tempo, e confesso que só tinha dado uma bizoiada nele. Apesar de entender a relevância de Shimotsuma Monogatari para a Moda, não é o tipo de leitura que eu gosto (discutível... do que eu gosto? Ultimamente só tenho lido coisas pra faculdade e... quadrinhos coreanos!... mentira, também leio light novel coreana. Talvez seja disso que eu goste... histórias que tratem mais dos sentimentos das pessoas...talvez... talvez por isso No Longer Human seja um dos meus livros favoritos... image há muito o que se pensar. Pode não parecer, mas esse tipo de leitura tem uma relação bem forte com o "gótico" da Moda Lolita.).

Essa edição vem com uma capa de proteção com as atrizes do filme, e uma capa simpleszinha de papel por baixo:

 

A biografia do Novala está logo na orelha da capa externa:


No índice temos apenas a marcação de Shimotsuma Monogatari e uma parte final com comentários de Nobuko Yoshida (吉田伸子) - que eu não conheço.  image


Os comentários finais:


 Mas enfim, como havia dito, vou trazer o primeiro capítulo traduzido! (Só o primeiro, não tenho tempo ou paciência para uma tradução completa image Além disso, imagina traduzir tudo e depois ter de tirar da internet por conta de direito autoral...? image). Claro que... no caso de Kamikaze Girls, os capítulos não são divididos. Estou tomando então o espaço de parágrafo maior que existe de X em X páginas como marcação de capítulo.

Separei os parágrafos em blocos e deixei as notas de tradução logo abaixo de um cada deles. image Fiz algumas adaptações para que o texto funcionasse em nossa língua, assim, é uma tradução livre e não pode ser usada para fins comerciais.

*Caso queira compartilhar em algum lugar, coloque o link direto para o blog... image (já privei várias traduções antigas aqui do blog por conta de gente folgada, me custa menos parar de traduzir)

 

Uma verdadeira lolita deve abrigar um espírito rococó e levar uma vida rococó. O Rococó, que dominou a França da segunda metade do século XVIII, foi o período mais elegante e opulento da história. Na história da arte, Rococó refere-se ao período por volta de 1715 a 1770, e veio logo depois do Barroco, cujo ideal de beleza de baseava na sobriedade e magnificência da fé católica. A valorização de ondas e curvas em lugar de formas angulares apareceu nesse período apenas porque deixar as coisas arredondadas é fazê-las mais fofas. O dinamismo masculino do majestoso Barroco era um pouco sufocante e sério demais para soar interessante, então foi criado esse estilo maravilhoso, delicado e feminino que, enquanto tinha a reputação de ser belíssimo, era ainda muito frívolo.

O nome rococó deriva da antiga palavra francesa rocaille, que significava "pequena pedra deformada" (sinto pelo academicismo; peço aos estúpidos que aguentem um pouco mais). Quando chegou ao seu período de glória, o Rococó era tão desprovido de intelectualidade que passou a ser visto como uma mancha na história da arte. Por que não fingimos que esse período não existiu? Tudo que passou parece um tanto estúpido agora, Sim, fomos forçadas a acreditar que esse tempo nunca existiu. É por isso que os pintores do período rococó, como Watteau e Boucher, são hoje mais desvalorizados do que merecem.

image Aos estúpidos: No original "頭の悪い人" = Pessoas ruim da cabeça, pessoas lentas da cabeça etc.
image Forçadas: em japonês os verbos não estão conjugados e, como você deve saber, não tem marcadores de gênero. Estou colocando no feminino quando chego nessas situações por assumir que é a Momoko quem está falando conosco. Infelizmente não tenho como reproduzir o mesmo efeito com o português, se não fica: "sim, forçar a acreditar" ;"estúpido parecer" etc.

Parece que aqueles que conhecem a história da arte não só desejariam que o rococó, como período artístico, não tivesse existido, mas também eliminariam tudo que se relacionaria a ele, partindo da  moda até os costumes e modos de vida. Ao que me parece, mesmo quando estudamos a história da civilização, as explicações sobre o período Rococó são super compactas, gerais e recheadas de comentários nada positivos.

Pois bem, quando pensamos em personagens representativos do rococó, a primeira que nos vem à mente é Maria Antonieta, que gozava de uma vida de luxos no Palácio de Versalhes e que, quando o seu povo não tinha dinheiro nem para comprar pão, deixava frases como: "Oh! Pois se eles não têm pão, que comam brioches!". Suas palavras foram capturadas então pela News Station e Hiroshi Kume fez com que ela fosse tomada como a encarnação do mal e conquistasse o ódio do povo, povo esse que a colocou sob a guilhotina depois de encenar uma revolução (a verdade é que se estivéssemos falando de alguém representativo do rococó, seria a Madame de Pompadour, que, graças à sua beleza e inteligência, subiu da base em direção ao topo da sociedade como governante à sombra da corte de Luís XV. Na verdade, não estaríamos exagerando se disséssemos que foram de seus gostos e hobbies que emergiu a cultura rococó). Por esta razão, talvez seja inevitável que o rococó seja entendido como a antítese da liberdade e da igualdade. Apesar de tudo, e do que os outros digam, eu vivo no rococó. 

image Hiroshi Kume: como dá para inferir, foi um apresentador de jornal da TV Asahi que deixou marcas importantes na televisão japonesa do fim do século XX.

Boucher, um dos pintores representativos do período, e que refletiu de forma ainda mais exagerada os elementos rococó das composições de Watteau, seu contemporâneo Diderot (não sei muito bem o que esse homem fez. Só sei que ele compilou um enciclopédia. Algo como um Kyōsuke Kindaichi francês? Kindaichi compilou um dicionário japonês... Talvez. Ou não.) declarou o seguinte: "Ele é moralmente corrupto, não entende de elegância, não conhece a verdade, é alguém que nunca viu a Natureza e a quem falta bom gosto". Ele também disse que as pinturas de Boucher nada mais tinham do que " uma elegância enjoativa, galanteios fantasiosos, coqueteria, simplicidade, mudança, brilho, pele maquiada e obscenidade". Esse cara, Diderot, se contradiz horrivelmente em suas afirmações, dizendo, por um lado, que não entende de elegância e, por outro, que suas pinturas eram elegantes.  No entanto, suas duras críticas a Boucher nunca chegaram à cultura Rococó em si.

image Kyōsuke Kindaichi, no original, "金田一 京助", foi, junto de seu filho, editor das primeiras edições do dicionário Shin Meikai Kokugo Jiten (新明解国語辞典 "Novo dicionário japonês compreensível"). Kyouske é muito famoso no Japão, principalmente na área de estudos de linguagem e sobre os povos Ainus.

Apesar de tudo, os amantes do Rococó levam como elogio essas críticas que utilizam da pintura de Boucher para dar uma imagem negativa dessa cultura. Respeitar as emoções doces, a elegância e a fantasia acima da realidade e da moralidade; mergulhar na paixão do momento em vez de tentar dar sentido à vida diante de um futuro que não conhecemos; deixar de lado a lógica e os costumes para valorizar a fruição do que vivenciamos no momento. Esse é o coração do Rococó (Eu tentei. Você pode rir). Se, por mais que pensemos nas coisas, obtivermos resultados angustiantes, e se mesmo que alcancemos o resultado esperado, se ele for enfadonho ou carente de beleza, nós o rejeitaremos. Se você gosta de algo, mesmo que tenha sido feito meio que como uma brincadeira, você deve dar valor a isso. O Rococó fundamenta-se no individualismo extremo, no não-julgamento dos gostos dos outros, na tomada de decisões com base no que se sente: "gosto disto" ou "não gosto daquilo", sem levar em conta as opiniões e esforços dos outros. O Rococó é muito mais anárquico que qualquer outra ideologia.. Somente através deste princípio chamado Rococó, em que o elegante é vulgar e o precioso é extravagante e desafia a lei, posso encontrar o sentido da vida.

image "Esse é o coração do Rococó". No original: "それがロココのココロなのです" É um trocadilho com os sons "rokokó" (rococó) e "kokorô" (coração).

Os bebês choram quando são arrancados do ventre da mãe, irritados por não entenderem os porquês de serem colocados para viver neste mundo absurdo. Pouco depois, lhes é revelado seu destino de viver com enorme desesperança, e pensam: "Então você está me forçando a viver neste mundo irracional, hein? Pois escute o que penso: não me queixarei de forma ingrata e amarga por ter que viver uma vida estéril; Viverei desobedecendo às regras que me obrigam a levar uma vida pacífica e tranquila; Viverei fazendo o que eu quiser." Quando o bebê perceber isso, ele rirá pela primeira vez. Portanto, não se comova ao ouvir um bebê rir pela primeira vez. Olhe atentamente, porque enquanto riem, seu olhar permanece fixo e penetrante. Apesar disso, a maioria das pessoas perde essa determinação à medida que envelhece. À medida que recuperamos o bom senso, começamos a seguir as regras sociais que antes pretendíamos ignorar. Mas ainda há alguns que não esqueceram essa predisposição desde o dia em que riram pela primeira vez. Estas pessoas, mesmo que façam chorar os próprios pais, mesmo que sejam condenadas a uma vida de pobreza, ou mesmo que recebam uma bronca pelo seu comportamento num programa de televisão como o de Monta Mino, não terão outra escolha senão seguir o estilo de vida Rococó.

image Monta Mino é um apresentador de televisão japonês. Ele apresentava programas de absolutamente todos os tipos na televisão japonesa, você pode imaginar que é algo da fusão de João Kleber, Jô Soares e Rodrigo Faro (por mais contraditório que isso pareça!).

O estilo “Lolita” é definido como um estilo de moda urbana típico do Japão. Para mim, porém, mesmo que Lolita seja uma moda, ela é algo muito maior do que isso. É também como um conjunto de valores pessoais absolutos e imutáveis. Usar uma blouse com babados, um espartilho na cintura, uma saia sobre uma anágua e o headdress mais absurdo possível são minhas formas de mostrar dedicação ao Rococó. Talvez, se eu não destacasse tanto vestindo dessa maneira eu teria mais facilidade de fazer amizades e de ser popular entre os garotos. Mas quanto mais me dão esse tipo de conselho, mais minha alma Lolita se anima, e mais minha determinação de dominar o estilo se fortalece.

image O Estilo Lolita: caso não saiba o que é a Moda Lolita, aqui no blog tem um guia de introdução nesse link.

O período Rococó, pelo que já vi e li em diversas obras, foi uma loucura. As senhoras do período Rococó podiam chegar a lugares que as lolitas de hoje, discriminadas pelos outros, não conseguem chegar mesmo com maior esforço. Elas apertaram os espartilhos ao limite para conseguir cinturas impossivelmente finas, embora não conseguissem ficar em pé por muito tempo. O menor estímulo causava dificuldade para respirar e desmaiavam, então outros tinham que carregá-las. Isso lhes deu charme como damas. E foram esses valores que prevaleceram durante o período Rococó. O cabelo era preso cada vez mais alto, e um grande chapéu era colocado por cima. Foram necessárias inúmeras horas e assistentes para finalizar os penteados, e graças a elas a altura das damas podia praticamente dobrar. 

No período Rococó havia muitas damas que, usando a vestimenta típica da época, não conseguiam passar pelo saguão de seus casarões nem mesmo ajoelhando, e por isso acabavam não frequentando as festas com as quais haviam se comprometido. Esses comportamentos estúpidos, que pessoas como Diderot consideravam modas tolas e distantes do bom senso, só podem ser admirados por aqueles de nós que abrigam o espírito Rococó. Podemos ser felizes priorizando o bom senso? Não nos disseram que a felicidade é alcançada através do sofrimento? Se tiver que sofrer, prefiro a infelicidade. Porque nós, pessoas do Rococós, sabemos que não há nada mais infeliz do que o dia do nosso nascimento.

image Confio no seu senso crítico e na sua capacidade de entender que essa é a visão da narradora (não confiável).

Também dizem que o Rococó é um período obsceno no qual, por baixo do conceito de elegância, era possível encontrar a adoração dos prazeres mundanos. Eu... Eu não gosto dessas coisas "obscenas", é muito vulgar... É verdade que, aos olhos dos estudiosos contemporâneos, a vida das damas do Rococó pode parecer algo escandaloso. O dia de uma dama normal era regido pela seguinte agenda:

Por volta das onze da manhã você acorda. Enquanto o cachorrinho que você tem em seu quarto late, você se deita em um dos lados da cama e espera que ele suba enquanto você esfrega os olhos preguiçosamente. Cansada de ficar enrolando, você sai da cama, abre um pouco as cortinas, verifica o tempo e fecha novamente deixando o quarto no escuro. Você toca uma campainha e chama a empregada. Enquanto você toma, de gole em gole, o chá que ela trouxe, outra empregada aparece. Agora que ambas estão no quarto, é hora de se vestir. Elas tiram sua camisola e colocam você em uma roupa íntima simples (você não faz nada por si só), e quando terminam, mesmo que você não esteja doente, cada uma delas agarra um de seus ombros e lentamente arrasta você para a penteadeira. Aqui elas demoram para fazer sua maquiagem e, quando terminam, te levam para o closet onde você escolhe suas roupas. Depois, a comida. E aí, até o anoitecer, você passa o tempo fazendo caminhadas, jogando cartas (que parece bonito escrito assim, mas é sobre apostas, né? Apostas...), andando de barco ou a cavalo. À noite você vai a recitais de música, vê peças de teatro, se diverte no baile... Claro, você come quando precisa. Você toma o tempo que for preciso com pratos deliciosos, grandes porções e escolhendo avidamente o que deseja comer. À medida que a noite avança, atividades mais indecorosas são praticadas. Para o povo rococó não se tratava de coisas indecentes, mas sim de uma espécie de jogo, algo como um esporte. E logo depois, ir para a cama. Embora se possa dizer que é um estilo de vida preguiçoso e obsceno, não é um estilo de vida puramente estético?

Entre o povo rococó, vários tipos de entretenimento tornaram-se moda. De todos eles, o mais difundido foi o bordado. Hobbies como bordar, ler etc. eram valorizados como atividade de fruição individual entre mulheres nobres desde antes do Rococó mas, por algum motivo, desde o início desse período, os cavalheiros também se sentiram atraídos por eles.

 Dizem também que o Rococó foi um período de feminização dos homens em termos de vestuário e outros aspectos, mas ainda é cômico imaginar honrados cavalheiros barbudos de boa posição ocupando-se com assuntos militares e políticos enquanto se divertem consertando seus bordados.

“Ei, Lorde Simon, eu dominei o ponto duplo da manta!”
“Que legal, Lorde Saxon! Sou um pouco desajeitado e até um tanto lento na costura..."
"Depois da próxima caça à raposa, traga o giz, o bastidor e as agulhas, que vou te ensinar."
"Ah , muitos obrigado. Ei! Que tal começarmos um clube de bordado com alguns meninos e tendo você como líder?”
“Isso pode ser bom.”
“Mas vamos manter isso em segredo das mulheres. Mesmo que elas descubram, não podemos deixar que participem porque as mulheres não levam essa prática a sério. Vamos organizar também um intensivo no verão!"

Ah, que tolice o Rococó! 

Mas a beleza suprema só pode existir nos limites da tolice.

image ponto duplo da manta: Em katakana no original: "Double blanket stitch". Sem ideias de como traduzir isso para o português.

 

E é isso! Espero que tenham gostado desse comecinho de Kamikaze Girlsimage Acho que a escrita aqui é bem melhor do que na PatchWork, mas continua não sendo o tipo de escrita que eu gosto de ler. O jeito como ele "enrola" nesse início é importante para dar a dimensão da Momoko, mas eu fico bastante impaciente com a ação que não se inicia.

Não acho que é um recurso estético ""proposital"" na escrita dele (se não só o teríamos aqui em SM), mas essa suspensão da ação mostra bem, né, o modo como a própria Momoko acredita ser experimentado o Rococó. image

Falando nisso, essa parte final sobre o bordado é especialmente relevante. Se você já viu o filme antes vai lembrar que é justamente essa dedicação da Momoko para o bordado que permite que ela customize um vestido, se envolva com a BABY etc. Gosto desse tipo de pista de antecipação do enredo, valoriza bastante a releitura! image

Mas enfim, ta aí.  

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3 comentários

  1. Ahhh Laura, que tradução adorável do Kamikaze Girls!
    Eu juro que não me lembrava desse início; eu li o livro uma vez mas assisti o filme muito mais vezes, e a explicação do Rococó no filme é bem mais dinâmica e curtinha.
    Sem sua explicação sobre os apresentadores japoneses / japoneses famosos ia ficar menos claro o significado das menções da Momoko...
    E importante demais seu comentário: "Confio no seu senso crítico e na sua capacidade de entender que essa é a visão da narradora - não confiável."
    Tem muitos livros narrados em primeira pessoa que a gente mergulha na visão do narrador e esquece que ele enquanto personagem tem uma opinião sobre as coisas que pode não exatamente refletir a realidade, hehehe! É muito o caso da Momoko por aqui.

    Curiosa para ver se você vai querer traduzir mais, e bateu vontade de ler a minha tradução americana <3 quero ver se é muito diferente ou se tem notas de tradução como você fez!
    Beijinhos

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    1. Obrigada pelo comentário, Heidi!! <3
      Sim! O filme dinamiza bastante essas "info-dump" que o Novala faz ao longo do livro, acho que em termos de ritmo o filme é BEM acelerado! hahaha E nossa, quando o texto é estruturado assim, meio "enciclopédia" vejo sempre a tendência de internalizarem como se fosse verdadeiro, ignorando (principalmente aqui) que é uma narração que parte de uma personagem e de sua (distorcida) visão de mundo... um perigo. uhahuahua
      Ahh!! Me conta depois se na tradução em inglês é muito diferente!! Fico sempre curiosa com as adaptações que precisamos fazer pro texto funcionar em nossa língua uhahuhua

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