[Filme] Peep Tv Show (2004) e Moda Lolita

by - 23:09

 Aviso de Gatilho: Automutilação, depressão, violência, discurso de ódio e por aí vai.



Peep 'TV' Show


Ano: 2004
Duração: 98 minutos
Gênero: Drama
Pontuação: ***** ( 0/5 )

"Uma alienada de 18 anos que busca consolo na Moda Gothic Lolita, um hikikomori que não deixa seu apartamento há meses, um assalariado que vive a vida para dormir e uma atendente de balcão que alterna seus relances desinteressados às câmeras de segurança com a leitura incessante de panfletos anti-guerra são algumas das figuras  postas lado a lado pela misteriosa figura de Hasegawa e seu site de bisbilhotar a vida alheia."

 (Com SPOILERS! )

Vou começar essa review explicando que ela não será, exatamente, uma review.

A razão? Estou aqui pra falar de Moda Lolita, e ela não é o tema do filme.

Peep "TV" Show tem uma vibe muito experimental do início dos anos 2000, e usa e abusa de uma trilha com remixes urbanos e rasgos agudos, colagem de takes em diferentes tipos de câmeras, cenas de cotidiano não encenado e por aí vai. 

A história mesmo é sobre um jovem alternativo que tem como hobby "espiar" a vida alheia. Primeiro, olhando debaixo das roupas das mulheres, e depois, olhando a vida privada das pessoas (não vou afirmar com 100% de certeza que é a vida privada de mulheres, mas tenho a sensação de que eram só mulheres nas câmeras privadas dele). Nesse meio tempo ele nota como as pessoas estão todas tão mortas por dentro quanto ele, e é isso.

Se eu tivesse que explicar qual a "mensagem" do filme, diria que é sobre a decadência da humanidade. Mas não é nada digno à la Osamu Dazai não. Na verdade, dignidade é uma coisa que não tem em Peep. A decadência vem, segundo o protagonista, da midiatização e espetacularização de tragédias e violência via TV e internet, do estilo de vida consumista japonês, do isolamento das pessoas e da necessidade constante que as pessoas têm de manter as aparências.

E daí ele faz uma conexão doida com o atentado do 11 de setembro, o estado mental dos terroristas e o estado mental do povo japonês, reforçando várias vezes como eles, de algum modo, mortos, também habitam sob os escombros das torres gêmeas. Como eles, também, são terroristas do país em declínio.

Recomendo o filme? Não. Não recomendo. Dizer que é bom ou não é muito subjetivo, mas vou me adiantar e dizer que esse filme me trouxe a mesma sensação de lamber o chão do banheiro da rodoviária. Ou de ideias rabiscadas no canto do caderno de um adolescente em fase de rebeldia.

Mas, caso esteja interessada, aqui tem a review de alguém que gostou desse filme: link.

Dito isso, passo então para falar do que importa: da Moe, a protagonista mulher do filme que, curiosamente, usa Moda Lolita. Felizmente não é um filme fetichento da moda, mas ele traz aquele clichê que a gente tá cansada de ver da Lolita linda por fora, podre por dentro. (Mas o filme é de 2004, mesmo ano de Shimotsuma Monogatari, hehe).

Enfim, a primeira aparição da personagem que usa Moda Lolita (Moe) acontece nos minutos iniciais do filme, gravada como que de uma câmera de segurança posta no canto do quarto.

 A história dos personagens vai sendo contada de maneira concomitante, mas como meu interesse aqui é na apresentação da Moda Lolita, vou focar na jornada da Moe apenas.

Os quatro vestidos iniciais, obviamente oldschool pra gente em 2021, servem para ilustrar a narração que a própria personagem faz sobre como ela é capaz de mudar de aparência com suas roupas, e que ela gostaria que cirurgia plástica fosse algo tão fácil assim.


Quem vem de Shimotsuma Monogatari pode achar que essa será uma Momoko 2.0, mas não tem nada disso. A personagem, segundo ela mesma, sente que é incapaz de ser a "verdadeira ela", e que, por essa razão, ela estaria constantemente mudando de rosto (aqui aparecem imagens dela de VK, com Purikura que deforma o rosto, de outras JFashion etc. para ilustrar essa constante metamorfose dela.).

Não sei a marca exata, mas pelo histórico dela deve ser ou Pretty ou Baby

As cenas dela se arrumando intercalam outras cenas dela andando pela cidade (estou assumindo que é Tokyo, pelos takes da Laforet que aparecem às vezes) com uma amiga também em Lolita. 

Cena vai, cena vem, vários takes se seguem para mostrar a situação de depressão constante em que a Moe (18 anos) se encontra.

A narrativa com ela segue mostrando cenas dela na Jingu Bashi com as amigas, apontando o contraste que existe entre a vida dela do lado de fora (roupas lindas, amigas que gostam das mesmas coisas, fotos cheias de sorrisos, estranhos na rua pedindo fotos etc.) com o estado de espírito em constante decadência.

As outras amigas que usam Lolita são Nao (19 anos), Nagomi (21 anos), Misaki (22), e todas parecem ter vidas estáveis (financeiramente e emocionalmente) quando em contraste com a Moe (que comenta, em uma cena em que está sendo entrevistada por uma dessas revistas que tiram StreetSnap, que não tem emprego nem estuda, e que está procurando por um amigo no momento). 

Alguns trechos de entrevista são adicionados no filme com as amigas da Moe, incluindo uma Lolita (a Nagomi) comentando que usa a moda porque ela não tem confiança suficiente em sua aparência, mas que quando ela usou a moda, pela primeira vez ela se sentiu linda. Até aí tudo bem, né? Mas aí ela continua o discurso dizendo que existem duas dela: a que se veste de Moda Lolita e a outra. Ela começa a questionar qual delas é a real: a que tem confiança na aparência ou a que não tem? E expressa, por fim, o desejo de que ambas as suas identidades se fundam, para que ela não precise mais se vestir na moda.

Ficou confuso? Pois é, essa cena foi adicionada provavelmente para ilustrar o conflito em que a Moe vive. No final do texto eu deixei um extra comentando sobre uma das autoras desse filme e como ela se reflete na personagem no sentimento de despersonalização. 

È de Gobelin? y_y

 É nesse ponto do filme que a vida Moe cruza com a vida do protagonista (o Voyeur creepo) e ela começa a entrar nessa de espiar a vida dos outros (de maneira criminosa, preciso adicionar).  Ela passa a ficar obcecada com a tal da "realidade" que ele jura estar vivenciando (ou seja, olhando dentro da casa dos outros, estilo Big Brother mesmo) e parte atrás dele nessa empreitada. 

A personagem, que não é boba nada, acaba usando o protagonista para ver a "realidade" na casa do namorado dela, e acaba descobrindo que ele e a Nagomi tão tendo um caso pelas costas dela. 


Daí é o filme mostrando que todo mundo, até a perfeita da Nagomi, é degenerado. A Moe, é claro, entra num estado de negação, e começa a normalizar a situação porque, segundo ela, "é assim também na TV". O filme continua explorando as degradâncias da Nagomi, que tem um site de hate em que publica mensagens de ódio, um diário em que critica as próprias amigas (incluindo a Moe), e conteúdos relativos a suicídio, desejo de morte alheia etc. etc.

E olha só:


 Apesar de ser uma paródia exagerada, quantos blogs desse tipo eu não vi no passado? Ainda hoje, conteúdos desse tipo parecem fazer sucesso com uma parcela edgy de alternativos. 

Enfim, a Moe descobre o blog e lê as descrições detalhadas que a Nagomi escreve de sua relação com o namorado dela e daí o resto da vida dela desanda. Ela sai motivada por qualquer coisa e vai atrás do Voyeur para ajudá-lo nas filmagens cada vez mais íntimas da vida das pessoas. 


Daí eles passam a monetizar o site (porque sim, era o esperado), e a Moe topa colocar câmeras na casa dela para mostrar a "verdadeira ela". Lembram que era justamente esse o problema dela? De falta de personalidade, de não se reconhecer etc.? Com as câmeras, quem sabe, talvez ela consiga se encontrar.

Óbvio que não, né? O que acontece é que ela vive nesse estado de constante vigilância e autoconsciência. 

Mas o tal é que ela faz muito dinheiro (ela e o voyeur) com a espetacularização da própria rotina, e daí propõe para o Voyeur deles irem para o "Ground Zero" com essa grana. Esse é o lugar em Nova Iorque em que ficava o World Trade Center. 

Sim, sinceramente, eles agem como otakus de 11 de setembro. Mas enfim, ela quer ir lá ver se acha a ela que está perdida sob os escombros (metaforicamente falando) . O Voyeur recusa e ambos percebem que o Ground Zero deles é bem ali, naquele quarto em que eles gravam as coisas etc. 

Fim. 

Isso mesmo, fim. kakaka.
Sinto que desperdicei várias horas do meu dia vendo esse trem. Mas é a vida, e estou satisfeita por poder liberar espaço no meu HD.


EXTRA - Trivia

  • Lojas que são diretamente mencionadas são Alice AuuA (uma amiga da Moe comenta que comprou o visual dela todo lá por 35K Yen), Victorian Maiden, Baby, The Stars Shine Bright e Pretty (antigo nome da Angelic Pretty). O logo da Alice and The Pirates aparece em uma das bolsas da Moe.

  • O nome da protagonista ser Moe é proposital.

  • Procurei por reportagens sobre a repercussão do filme à época do lançamento e, como esperado, não tem tanto conteúdo sobrevivente de 2004 (para além de muita insatisfação do público geral, tipo eu).

  • Apesar disso, existem informações sobre uma das co-autoras, Amamiya Karin, que participava de bandas Punk ligadas a grupos de direita no Japão (o que talvez explicasse o aparecimento de suásticas aleatórias, para além da estética do VK. Particularmente, não sei do que se trata a ala direita política japonesa, mas nas entrevistas, e no próprio filme, ela comenta sobre sentimento anti-estadunidense, saudosismo pelo "glorioso Nippon" e anti-consumismo) e que se apaixonou pela Moda Lolita durante a adolescência, em um período turbulento de sua vida. Por seu texto, Karin parece estar num constante estado de depressão, despersonalização e automutilação (temas que envolvem boa parte de suas produções e, em Peep, parece ter servido de background para a protagonista Lolita).

  • Achei interessante que boa parte das críticas dos ocidentais normies é quanto à presença da Lolita no filme. Segundo eles "não faz sentido essas roupas", o que achei curiosíssimo diante de tanta coisa realmente sem sentido na ~trama~! A moda, inclusive, serviu pra ilustrar o contraste da vida da protagonista que se sente sem personalidade. Se voltarmos um pouco na história da moda, as moças que vestiam Lolita eram justamente ostracizadas da sociedade por "quererem chamar a atenção" ou "quererem ser únicas demais" (de maneira pejorativa) ou de serem materialistas, que é uma das contradições da Moe.

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5 comentários

  1. Legal que você voltou com o blog!!
    Li tudo, o filme parece interessante pelo espírito da época que ele representa, mas realmente não tou surpresa com o alinhamento político da autora, é um diagnóstico bastante moralista do mundo esse que ela expressou no filme.
    Assim, vc falou que não sabe o que significa "política de direita no Japão", mas em resumo, posicionamentos de direita e conservadores são aqueles que enxergam que os problemas da sociedade tem a ver com decadência moral, uma desorganização da ordem natural daquela sociedade. Por exemplo, vão afirmar que esses comportamentos ruins das pessoas tem a ver com falta de patriotismo, ou de religião, ou porque a pessoa pertence a um grupo de degenerados. Para entender um pouco mais como pessoas de direita enxergam o mundo, recomendo um autor italiano chamado Paretto (com o aviso que ele era, não surpreendentemente, fascista).

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    1. Ei, Annah! Obrigada pelo comentário!
      Ahh, esperava que a direita japonesa tivesse mais particularidades que a direita que a gente conhece por aqui! Às vezes vejo o sentimento de restauração da falsa ideia de "Glória Imperialista" japonesa bem latente nesse povo, e às vezes vejo grupos que são super pró aliança EUA + Coréia do Sul + Japão, contrariando o sentimento ultranacionalista de independência do mundo ocidental. Imagino que tenha grupos divergentes nessas particularidades, mas no geral todos tenham esses aspectos que você mencionou, né? Obrigada pela recomendação!!

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  2. Vale dizer que todo pensamento de direita é implicitamente pró capitalista, porque eles exergam que os problemas desse sistema tem a ver com a decadência moral, e não com problemas de ordem econômica-politica. No caso do Japão, no começo dos anos 2000, o capitalismo japonês estava em crise a mais de uma década, em uma longa estagnação do setor industrial. Para quem tinha essa visão de mundo, o problema estava ligado a ocidentalização da sociedade, em particular, ao consumo da cultura ocidental pelos jovens. O filme parece alinhar-se muito bem com essa visão de mundo, na verdade, lembrou-me também do Laranja Mecânica, que é um outro filme escrito por um autor conservador sobre juventude degenerada.

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  3. AHHHHHHHHHHHH OLHA QUEM VOLTOU!!!!!! Q SDDS EU ESTAVA DOS SEUS POSTS <3

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    1. Hauahaua!! Obrigada, Jaqueline, sua linda! ;; Eu vou postar bem pouquinho porque estou postando no meu blog de estudos, mas agora as férias estão chegando (depois de 2 anos ;;) e eu terei tempo!! Eeeee

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