[Conto] São Valentín: Bonito demais para não usar
#fluff #lolitafashion #oneshot #fallinginlove #valentines
Meu reflexo ia opaco contra a superfície das espátulas. Tentei desviar os olhos, consciente demais da monotonia de meu próprio rosto, e voltei a atenção para a fileira de tortinhas ainda por decorar.
Não era uma tarefa fácil. O verde choco do uniforme de confeiteira parecia invadir minha pele e criar raízes na exaustão que diariamente se assentava sob meus olhos. Não vou falar dos cabelos. Passavam tanto tempo dentro da touca de cozinheira que eu mal me lembrava de que algum dia os tivera. Pelo menos ali, entre rendas de chantilly e babados de pasta americana, eu podia extravasar aquilo que, ainda sem nome, deixava nós em minha garganta.
Mas hoje era São Valentin.
O dia dos namorados estrangeiro atraía uma série de clientes novos para a loja. Caprichar nas tortinhas era o mínimo que eu podia fazer — por eles, por mim e por...
— Rebeca, vem para o balcão.
Levantei da bancada em um salto e me adiantei para remover as luvas e enfileirar as tortas. Cuidei que o morango estivesse bem polido: uma colherzinha de açúcar caramelizado deixava o vermelho mais vibrante. Ela ia adorar.
Não consegui sorrir. Meu coração batia rápido demais para isso. Pousei a bandeja no mostruário e corri para o balcão, já beliscando a bochecha. Pela vitrine, vi quando ela chegou e parou do lado de fora, conferindo o cardápio.
Não sabia o seu nome, sabia apenas que todo São Valentín ela passava na confeitaria para levar suas tortinhas. Comprava uma bandeja inteira, deixava um sorriso e desaparecia por um ano.
Por um ano inteiro eu esperava, ansiosa, pelo dia em que ela voltaria para fazer seu pedido. Nunca repetira um vestido. Ela toda parecia ter saído de um conto-de-fadas, com laços, estampas e rendas que eu jamais sonhara ver de tão perto. Mas não era só isso: seu rosto, cada vez emoldurado por um corte de cabelo diferente, parecia refletir um tipo de felicidade inalcançável. Um tipo de felicidade que nasce de dentro, que cresce nos olhos e se derrama em um sorriso genuíno. Vê-la, de algum modo, me fazia acreditar que eu, que tantas vezes pensara não ter muita vocação para felicidade, poderia um dia também cultivar em mim aquele sentimento.
— Gostei da sua roupa. — Ouvi um colega de trabalho comentar quando a garota se aproximou. — É de algum desenho?
Meus beliscões na bochecha de nada adiantaram. Eu estava pálida novamente, o peito apertado com o comentário lançado sem muito tato. Ela ficaria ofendida? Deixaria de vir à confeitaria? Engoli em seco e não sei que força me empurrou para frente, impedindo-o de continuar com as perguntas.
— Não. — Respondi uma oitava mais alta. — É claro que não!
Eu sei que o silêncio que se seguiu não deve ter durado mais que dois ou três segundos, mas a ansiedade que me tomou fez com que o momento se esticasse por horas de pura angústia.
Tive tempo de me arrepender, de engolir em seco e de desejar que o mundo acabasse naquele instante, mas contrariando todas as minhas expectativas, ela sorriu. Sorriu e, como uma adolescente, senti muito mais que borboletas embrulharem em meu estômago.
— Você conhece a moda? — Ela falou com expectativa nos olhos.
Assenti com a cabeça baixa e escondi meu celular no bolso, consciente das milhares de imagens salvas em minhas pastas. Meu fundo de tela, inclusive, era a capa de uma dessas revistas japonesas da moda – ela não tinha como saber, é claro, mas escondi o aparelho mesmo assim. Não combinava comigo, eu repetia cada vez que meu reflexo aparecia na tela escura, não adiantava sonhar.
— Você usa?
— N-não! — Minha voz saiu falhada. — É bonito demais para...
As palavras morreram em meus lábios antes que pudesse terminar. A garota à minha frente ergueu as sobrancelhas antes de franzi-las no mais teatral gesto de indignação.
— É bonito demais para não usar. — Ela completou, erguendo as mãos para o próprio cabelo, de onde destacou um lacinho. Acompanhei seu gesto com surpresa, e não reparei quando ela, já com a voz mais baixa, projetou o corpo para a frente e sussurrou: — Se vestidos falassem, tenho certeza de que brigariam para serem usados por uma moça como você. — Plop! Ouvi o lacinho recém-destacado prender-se à minha lapela. Ergui os olhos para encará-la e, surpresa pela proximidade, tive tempo apenas de sentir o perfume adocicado que usava.
Ela se afastou, recolheu a bandeja que pedira, e deixou o pagamento sobre o balcão. Já do lado de fora, acenou com cuidado, desaparecendo pela calçada do bairro.
Não me movi.
Na vitrine, meu reflexo, um pouco mais corado, um pouco mais vivo, parecia sorrir de volta. Não vi o cansaço, não vi a monotonia. Meus olhos, fixos no laço em minha lapela, vislumbravam com certa ansiedade o próximo dia de São Valentín.
2 comentários
Adoreeeei Laurinha!!:clap:
ResponderExcluirNa fé de que você vai começar a postar mais desses por aqui :]
Ahhh brigada, Mariana! Fico feliz que tenha gostado <3
ExcluirHahaha apesar de escrever bastante, eu acabo que nunca publico por aqui. Acho que sou mais "super-consciente" de textos do que de ilustração, no final das contas.
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